Jimmy The Sailor

Ensaios

Livro "Ensaios"

Na apresentação deste livro decidi pôr como amostra este conto completo, um dos que me deu mais prazer em escrever.

CONVERSAS COM DEUS

Lembram-se de um conto de H.G.Wells que se chama de “O Dia do Juízo Final”?
A Humanidade depois de ter morrido enfrenta o julgamento e no fim tanto os pecadores como os pios correm a refugiarem-se na manga de Deus depois de os seus pecado terem sido expostos. A vergonha e a humilhação da exposição quebraram as ultimas barreiras que a humanidade tinha.
Excepto eu.

Estava eu ansioso á espera do meu momento vendo uma incomensurável fila de almas a serem atendidas, algumas entravam com ar altivo, outras iam cabisbaixas. Reconheci algumas, reconheci-as da História e esperei pela minha vez. Como seria? O eterno medo do desconhecido a roer-me a entranhas, a ansiedade a apertar as minha úlceras, mais do que o desconhecido era a espera que me custava mais.
- Bolas! Isto deve ser o tal de purgatório! - disse eu afim de quebrar o nervosismo.
Respondeu-me um coro de silencio de uma série de almas que me rodeavam, todas elas lívidas de medo. Eu também tinha medo. Quem não tem medo de um ser omnipotente? Só um tarado e a mim só me tinha sido diagnosticada uma depressão e acho que nada mais, por isso tinha medo.
- que estúpido! Ia dizer que tenho medo porque estou vivo e agora não passo de mais uma alma. É suposto as almas não terem medo....
------ LUIS SILVA ---- A voz troou ribombou nos meus timpanos, chamando-me finalmente para o julgamento.
Caminhei em passo miudinho e rápido, um passo que eu odeio mas que instintivamente o estava a fazer e aproximei-me de Deus.
Diz-se normalmente que a face de Deus é bondosa e que quem olha fica imediatamente rendido e chora os seus pecados. Realmente achei que a face de Deus era a de uma pessoa franca mas não vi aquela bondade lamechas que me andaram a vender toda uma vida. Ergui os olhos e mirei-o.
- Aqui estou!
E num flash recebi toda uma chuva de imagens e pensamentos que resumiam os meus pecados, desde o pensamento mais pecaminoso e escondido nos recondidos da minha memória até ás minhas acções mais públicas e consideradas de pecados, maldades ou o que quiserem classificar. Fiquei atordoado, Ele sabia tudo mesmo.
- ARREPENDES-TE????
- huuu! De quê? – pergunto eu tentando ganhar tempo.
E recebo mais “flashada” de imagens que me fazem corar de vergonha.
- bem... realmente não são muito bonitas mas com elas não fiz mal a ninguém. Foram coisas que me passaram pela cabeça, dalgumas tive algum prazer, doutras nem por isso... fantasias.... coisas que se vivem no imaginário.
E volto a receber uma revoada de imagens, do mesmo género mas mais intensas. Olho em volta e vejo todo um conjunto de olhares reprovadores, almas ainda por julgar julgando e reprovando os meus pecados. Aquilo chateou-me, não gosto de ser exposto assim e reagi como sempre reajo.
- isso tudo é verdade e se tenho vergonha? Não, não tenho. Não tenho vergonha de uma coisa que é minha. Tenho consciencia de tudo o que fiz e pensei. Sei que muitas coisas são erradas e aquelas que acho realmente más não as repeti, pelo menos tentei. Se repeti apenas me magoei a mim mesmo e a mais ninguém. Sou consciente dos meus actos e eles estão feitos, existem e são parte de mim. Não me posso arrepender de mim. Se me arrependesse de mim dava um tiro na cabeça não é?
Fez-se um silencio sepulcral. O julgamento estava interrompido causando um grande escandalo no Reino. Os anjos esvoaçavam loucamente á volta de Deus, levando e trazendo informações enquanto que o Senhor... me olhava fixamente, um olhar gélido de um Deus do Velho Testamento. Intimamente pensava: “Bolas, fiz merda outra vez....”
- Eu criei a humanidade á minha imagem e quero-a como a um filho. Arrepende-te e vem para o meu regaço que eu acolho-te com todo o meu amor.
Não sei se já conteceu com voces mas ás vezes eu bloqueio. Lembro-me de quando era criança o meu pai chamar-me e eu estando a ouvi-lo não lhe respondia, via o tom a subir de intensidade mostrando um crescer de furia e isso fazia com que eu me calasse e não respondesse, ficava bloqueado, sentia-me bloqueado, só que essa mania me acompanhou até á minha vida adulta e agora parece que se transmitiu á minha alma, fiquei bloqueado e respondi:
- Não me arrependo da minha vida, vivi-a de acordo com a minha consciencia, com coisas boas e más mas são minhas e de mais ninguem. Não quero ser desprovido delas, não quero ser igual aos outros.
- estou a ver que a tua vida foi um purgatório e que ele foi por ti causado. Vou-te fazer a vontade e vou-te dar o verdadeiro purgatório...
E vi-me perdido no deserto mais completo do universo, não tinha dimensão, não tinha nada que os chamados sentidos o notasse, era o nada e eu flutuava só nesse negrume cinzento. A minha alma afastava-se cada vez mais, cada vez mais pequena flutuava no nada com o tempo a passar. O tempo que não se contava nem em segundos nem em batidas do coração, um tempo que não se contava, corria e não existia, apenas a consciencia da sua existencia. E a minha alma começou a perder brilho, de um azul marinho brilhante passou para azul escuro e acabou por ficar num azul cinzento meio descolorido até que adormeci, pelo menos acho que adormeci não sei se as almas dormem ou apenas perdem a sua consciencia de almas, sei apenas que me apaguei.
Acordei de repente no meio de meia dúzia de almas meio esmorecidas, todas com um aspecto acabado e perguntei aonde estava. Olharam para mim com ar de espanto e gritaram:
- és burro ou quê? Ainda não te apercebeste que estamos no juizo final?
- ah é? Então ainda não se passou muito tempo, pensava que tinha sido uma eternidade.
- és mesmo estupido, tavas aí a dormir enquanto nós esperávamos a nossa vez, somos os ultimos.
E foram desaparecendo um por um, não vi para onde pois tinha perdido a capacidade de ver, julgava-me numa sala pequena e cinzenta, mas afinal estava na sala do julgamento e não a via...
----- LUIS SILVA ---- ribombou a voz de Deus.
Desta vez já não dei nenhuma corrida, apenas me arrastei para a sua presença, não tinha forças e comecei a ter consciencia do castigo que me tinha sido dado e ao me lembrar da sua causa assomou-me um sorriso travesso. Só mesmo eu para andar a chatear Deus na sua tarefa.
- deixei-te para o fim para que pudesses pensar melhor na nossa conversa. Que pensas agora?
Nunca disse que era uma pessoa inteligente nem razoável por isso respondi.
- voce criou-me como eu sou, com qualidades e defeitos. Vivi a minha vida como pude tentando ser o melhor que pude. Cometi erros, fiz o bem, amei e ... até nem odiei muito, dava muito trabalho, cometi mais asneiras querendo amar do que as que cometi querendo odiar. Gostei da minha vida, ás vezes foi merdosa mas também teve as suas compensações. Não, não vou negar a minha vida. É a unica coisa que é minha. Pode-me apagar do mapa mas a minha vida existiu e voce teria sempre a consciencia disso por isso a minha vida é imortal, a minha vida é a minha alma.
Tinha feito merda outra vez e mais uma vez bloqueei, não podia voltar atrás, estava amarrado á minha teimosia. Cerrei os olhos e esperando o pior exclamei:
- não renego a minha alma, não renego a minha vida, faz o que quiseres de mim.
Deus olhou para mim e sorriu. O seu olhar mostrou uma especie de piedade que eu ainda não me tinha apercebido.
- Queres ficar só? eu mostrei-te um bocado da solidão eterna, a verdadeira obliteração. Vem para o pé dos outros, existem cá almas á tua espera, querem a tua companhia.
Volto a receber uma verdadeira cascata de imagens, todas elas cheias com as pessoas que eu mais amo na vida, especialmente a minha companheira de agruras numa vida que foi construida em volta de muitos obstaculos, vejo a cara dela angustiada a olhar para mim, a cara que fazia quando eu fazia merda e ela ficava á minha espera, á espera que eu ficasse normal outra vez, vi toda a gente que gostou de mim, os meus filhos, os meus pais, amigos e até num cantinho reparei numa coisa dourada que miava desesperadamenteo.
- os gatos também vêm para o céu? pergunto eu verdadeiramente surpreendido.
Deus sorriu e disse:
- é um bocado dificil de explicar. Os animais não tem o mesmo nivel de alma que os humanos, esses foram feitos á minha imagem, aquele está ali porque tu é que o projectaste ali, faz parte integrante do teu céu.
- e as minhas antigas namoradas também vão estar lá? – perguntei eu antecipando o paraiso.
- não, elas estão no mundo delas e não podem fazer parte do teu mundo pois ia colidir com os personagens do teu mundo.
- isso quer dizer que tenho de me arrepender não é???
- isso mesmo!
- como eu já disse, não renego a minha vida e eu amei-as nessa altura e não renego isso.
- não me deixas outra solução, tenho que te deixar para trás.
- o que também não seria muito justo para as pessoas que me amam não é?
- atreves-te a desafiar-me? A duvidar da minha capacidade de justiça?
- não, não duvido mas enquanto depender da minha vontade não me arrependo, é uma prerrogativa que eu tenho, foste tu que ma deste. Esperemos que essa prorrogativa não cause danos a outros.
- Olha ó alma teimosa e burra vou-te contar uma coisa que já te tinha dito e parece que tu não te apercebeste. Cada alma fica com o seu paraiso proprio com as suas projecções. As pessoa que te amam ficarão com uma projecção da tua alma burra e teimosa e serão felizes.
As coisas começavam a compor-se, eu era uma alma burra e teimosa...
- não quero viver com a consciencia que tive uma vida e que a reneguei. Continuo a achar que no fundo a unica coisa que temos é a nossa consciencia, a vida perde-se, a consciencia é eterna.
E fui inundado com imagens do meu funeral aonde o meu grande amor chorava desconsoladamente a minha perda. Aquele choro era testemunha do seu grande amor e a falta que eu lhe iria fazer até ao dia da sua morte, até ao dia em que ela esperava reunir-se a mim no dia do juizo final.
- a consciencia é eterna, tens muita razão naquilo que dizes! – exclamou Deus a olhar para mim. – Consegues viver com a consciencia do mal que estás a causar a esta pobre alma?
Olhei para Deus com lágrimas nos olhos e ele sorriu-me carinhosamente e, de repente, dá uma gargalhada e com uma palmada nas costas diz-me:
- vem cá para dentro que isto vai ser uma curte...
Fiquei embasbacado a olhar Deus, não o imaginava desse modo.
- não és tu que achaste que Deus não tinha aquela cara de bondade lamechas?

Epilogo
Já fui apanhado uma data de vezes a espreitar os outros céus á procura das minhas antigas namoradas. Acho que tem sido aquela desgraçada que eu amo que faz queixinhas a Deus. Sou chamado á presença d’Ele, sou chamado de alma burra e teimosa e sou mandado de volta com um pontapé para o meu céu chatear o meu gato mais um bocado.

Jimmy, 17 de Abril de 2006

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